Alípio C Neto: Palpando o Abstrato
Para apresentar o saxofonista Alípio C Neto, Vitorino redige um excelente texto, que primeiro o contextualiza dentro da vanguarda do jazz e depois analisa seu show em Recife.
20/08/2009 - Bruno Vitorino
O início dos anos 1960 representou, para o jazz, rupturas. As (antes) inovadoras formas do bebop com suas pesadas progressões harmônicas, seus fraseados velozes e seu compasso quaternário passaram a ser vistos como antiquados. Musicalmente, o motivo para tanto foi apenas um: a difusão da atonalidade. Com isso, jazzístas como John Coltrane, Archie Shepp, Cecil Taylor, em busca da plena libertação dos clichês e convenções estabelecidos pelo tonalismo, romperam com os pontos de apoio auditivos (centros tonais), diluíram o beat criando um ritmo irregular, incorporaram elementos musicais das mais variadas culturas (principalmente as orientais) e integraram às composições algo até então não presente no vocabulário musical: o ruído.Os críticos ficaram estarrecidos. Na tentativa de achar algum vestígio de solo firme para caminhar por essa forma de expressão musical, batizaram o movimento de The New Thing - algo como “A Nova Coisa” - acusando os músicos de fazerem anti-música. Já o público, que não era dos maiores haja vista a debandada maciça dos jovens para o universo do rock, ficou ainda mais diminuto. Resultado: nos Estados Unidos, o free ficou reduzido a poucos espaços com pouca platéia. O irônico é que o movimento revolucionário foi encontrar fora de seu local de origem amplo espaço para difusão.Por conta da familiarização dos instrumentistas e do público com o atonalismo devido às experimentações da música erudita, o free jazz encontrou amplo espaço para se desenvolver na Europa. A constante passagem dos jazzístas mais importantes do free no velho continente deixou marcas profundas nos instrumentistas locais. Entusiasmados pelas novas perspectivas improvisativas, músicos como Peter Brötzmann, Evan Parker, Alexander von Schlippenbach, dentre outros, iniciaram a consolidação de um núcleo de livre composição e improvisação na Europa, chegando inclusive a promover avanços significativos nessa linguagem. Como o público acompanhava de perto essas exitosas experimentações, os músicos tinham sempre a quem mostrar suas composições. Dessa forma, nichos eram criados e a música livre se firmava. O resultado desse processo hoje é uma cena free madura, criativa e atuante que tem conexões com a vanguarda do jazz mundo afora.Inserido na atual cena avant-garde da Europa, está o saxofonista brasileiro Alípio Carvalho Neto. Nascido em Floresta, município do Sertão pernambucano, Neto se mudou para Portugal para conclusão de seu doutorado na Universidade de Évora sobre as relações entre a poética literária e a música. Seu interesse pelo universo sonoro começou em casa com o incentivo do pai, o que posteriormente o levou a ingressar na Escola de Música de Brasília. Estudou, no Brasil, com grandes nomes como Hermeto Pascoal, Roberto Sión, Carlos Eduardo Pimentel, Dilson Florêncio, dentre outros. Já gravou e tocou com inúmeros compositores, grupos e orquestras de música brasileira e jazz, a saber: Armando Lôbo, Brasília Popular Orquestra, Gregg Moore, Trio Fulutchi, etc... Nos últimos anos de trabalho em terras portuguesas, o saxofonista se consolidou como uma das mais importantes forças do free jazz atual. Logo assinou com a gravadora lusa Cleen Feed Records que visa registrar os projetos contemporâneos inovadores do jazz livres das convenções da grande indústria cultural, gravando importantes discos com os diferentes projetos que lidera. Em 2006 lançou o excelente Sung as a Gun com seu quinteto franco-luso-belga-brasileiro IMI Kollektief. Já em 2007, foi a vez de Wishful Thinking com outro quinteto plurinacional que retrata musicalmente a dicotomia humana entre racional e instintivo. Mas foi com The Perfume Comes Before the Flower, lançado também em 2007, que Alípio teve seu merecido reconhecimento internacional, recebendo críticas positivas de Richard Cook e Brian Morton na nona edição do “Penguin Guide to Jazz Recordings”, o que o coloca junto com Naná Vasconcelos como os únicos pernambucanos a ter seus trabalhos comentados em tal publicação.Na sua contínua procura por mostrar a música como uma poética dinâmica do artifício humano, além do cerebral e transcendental, C. Neto é intenso. Seu tom vigoroso ao saxofone evidencia um integração surpreendente com o instrumento, tornando possível qualquer forma de expressão que desejar. Os experimentos polifônicos presentes em suas composições levam a música do mais firme solo harmônico ao mais etéreo ruído com uma naturalidade espantosa. Em sua música, o abstrato parece tomar forma. Soa e ressoa palpável.Em sua recente passagem por Recife, Alípio reuniu músicos locais para se aventurarem em suas novas composições baseadas na polifonia do “Cantu a Terone” da Sardenha, no “Cante” alentejano e na tradição musical do Sertão pernambucano. A Alípio C Neto Brasilian Ensemble composta por C. Neto, Ivan do Espírito Santo (sax barítono), Thelmo Cristovam (sax “C” melody), Osman Júnior (baixo) e Márcio Silva (bateria) fez uma bela apresentação. Forte talvez seja o adjetivo mais apropriado, porque liberdade para vôo pressupõe saber voar, caso contrário vira queda livre.Por essa razão, foi interessante presenciar músicos costumeiramente imersos nas convenções do tonal mergulhando na plena liberdade harmônica, rítmica e melódica do free jazz. Saltando sem para-quedas no intuito de planar ao invés de cair, os instrumentistas (à exceção de Cristovam) foram se familiarizando com a linguagem e encontrando seus espaços ao longo do concerto. O resultado foi sublime. Nos tempos atuais onde muito se produz a todo instante e em todos os lugares, torna-se difícil encontrar os trabalhos mais relevantes que merecem um olhar mais aproximado. Pérolas podem passar despercebidas quando circundadas por grãos de areia. Outras preciosidades, no entanto, revelam um brilho tão estonteante que é impossível ficar indiferente. Assim é a música de Alípio C. Neto. Suavidade que ofusca, repouso que tensiona, assimetria que delimita, razão que emociona, palpável que abstrai. Uma junção de complexidades que irradia o humano.
Tuesday, August 25, 2009
Monday, August 3, 2009
Paura - The Construction Of Fear (Creative Sources, 2008) *****
Two years ago, Brazilian saxophonist Alípio C Neto released a great album on Clean Feed with 'The Perfume Comes Before The Flower", now he goes a step further into avant-garde territory on Ernesto Rodrigues' Creative Sources label, equally Portuguese. Ernesto Rodrigues plays the viola, and his son Guilherme cello, Dennis González plays trumpet (and vocals) and Mark Sanders drums. Father and son Rodrigues are of course well-known for their experimental take to modern music, Sanders is one of the finest drummers in the European free improv scene, but adding González to the band was a very clever move. Against and in the context of the unusual and weird sounds that the string and percussion create, Neto's staggering expressivity and González' emotional lyricism form a wonderful counterbalance. These five musicians are not a natural match, yet their openness to each other and their musical skills for interaction are strong enough to make this an incredibly powerful and creative piece of music. Spread over three long tracks, they dive deep into the meaning of fear, evoking the feeling slowly, gradually, like something that creeps into you, full of surprises, but then rather of the mind, getting you off-balance and into unwanted places. But this is surely not a horror movie, that lives on cheap effects and lack of subtlety, quite the contrary, nuance, finesse, and a sensitive approach to how music can sound different while still striking an emotional chord is the main angle here. This is not music that will make you comfortable, it will suck you up, it will create distress, you will be glad and relieved and sad to hear some long lyrical phrases by González, but then they are replaced by some agonizing wails by Neto, which also dissapear, and you stay with the darkness created by off-beat drums and the extended technique sounds of the viola and cello. And through the quite uncanny and eery sounds, beauty emerges, once you get acquainted with the musical universe they create, once you accept what is going on and stop rationalizing, the artistry opens like a flower, not releasing sweet scents, but a dark and terrifying beauty. No, these guys are not a natural match, but for the music presented here (and it is not jazz, really), they are no doubt the perfect match.
By Stef
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